Recomendo a leitura desse texto ouvindo essa canção.
A primeira coisa que faço pela manhã é beber água, abro a torneira pra zuzu beber também, ficam as duas meio ensonadas ali, lavando o corpo por dentro. A zuzu é a gatinha da minha mãe, ela ta morando comigo há mais de 6 meses, porque minha vó teve de ir morar com minha mãe e a cinzinha, gata da minha avó, foi junto.
As duas se detestam, a zuzu e a cinzinha, por isso uma delas veio parar aqui em casa. Fiquei até feliz, mas pra mim o ideal mesmo era que elas convivessem e se lambessem em paz tal qual os gatinhos da internet. Só outro dia que me dei conta: E quem garante que esses mesmos gatinhos não se engalfinham em outros momentos? Pois é.
Parece que a paz permanete é apenas um ideal ou uma probabilidade que varia de acordo com o tempo, intensidade e recorte das relações. É chato, mas é a realidade. Ao invés de arrastar culpa cristã pelos momentos de discórdia, melhor aceitar que ela é inevitável a todas as vidas.
O mito da “não violência”
Melhor que paz, é a paz alcançada sem violência. Esse era o discurso de Ghandi, um dos principais ativistas social-políticos indianos na sua luta anticolonialista. Fundador do movimento satyagraha, Ghandi incorporou princípios de não violência (ahimsa) e verdade (satyagraha) como base de sua “resistência passiva” ao imperialismo britânico.
Ahimsa e Satyagraha são conceitos ricos em bibliografia, preceitos milenares que estão em textos como Vedas, Upanishadas, Bhagavad Gita, nos Jaina Sutras e é parte também do arcabouço filosófico budista, no geral.
Dalai Lama, reencarnação de Avalokiteshvara e portanto líder espiritual do budismo tibetano, foi por uma linha parecida a de Ghandi na resistência tibetana contra a tomada da China, mas é tudo balela. Nenhum deles bancou a não-violência na prática, sob todos os contextos.
Ghandi comemorou a vitória japonesa sobre a Rússia, disse que Stalin era um grande homem e também já corroborou em situações de guerra com a Inglaterra, como no conflito da África do Sul.
Já Dalai Lama chegou a fazer um xadrez verbal e justificar o uso da violência, separando “método” de “motivação”. O método pode envolver matar, desde que a motivação seja a compaixão – bem na ondinha de um recorte do Bhagavad Ghita.
Mas não é só na Índia que cresce o discurso pacifista que aparentemente é insustentável, como mostra Domenico Losurdo, historiador e filósofo italiano, em seu livro “Non-Violence: A History Beyond the Myth” em que levanta as contradições dos mais famosos e influentes movimentos pró não-violência da história ao redor do globo.
No texto ele fala dos movimentos anticolonialistas, mas também relaciona Gandhi e Tolstoi, Gandhi e o movimento socialista, passa pelo partido de Lenin, toca o abolicionismo cristão, o pacifismo nos Estados Unidos e tem até a audácia de levantar a ficha de Martin Luther King e apelidar ele de “Gandhi Negro”, apontando um Afro-Radicalismo Americano.
É um tópico delicado. Losurdo não devia se conformar que a galera engole qualquer discurso de paz quando tudo ao nosso redor envolve disputas de poder. É quase acreditar na propaganda de fartura do partido Chinês na época da grande fome.
No fim, Losurdo diz que as “Revoluções Coloridas” são um grande jogo e trás uma “proposta” de não-violência mais realista para a realidade da época – de iminente ataque nuclear. Vale a leitura, mas veja bem, é um assunto muito desagradável.
Só trouxe essa questão da complexidade entre paz e guerra; e da discrepancia entre discurso e prática de não violência, porque foi a melhor maneira que pensei em começar a abordar a Baghavad Ghita.
Então vamos chegar lá logo, hoje quero falar sobre alguns detalhes técnicos de suas publicações e traduções, contar que, como disse acima, além de usarem seus conceitos para defender grupos de não-violência, as pessoas também conseguem usar a mesma narrativa pra acobertar as atrocidades nazistas.
Como isso? Veremos. Não tiraremos conclusão alguma e depois que terminar o texto a gente volta a desejar a paz, em paz. Good Vibes. Be Happy. 🤝
Baghavad Ghita
No texto, há uma batalha e o recorte mais comum que se faz da história é o seguinte:
De um lado os bonzinhos da família, do outro a galera que roubou o trono por ambição. Um dos bonzinhos (seu nome é Arjuna) questiona: “Apesar de ser politicamente justo, como posso matar meus próprios tios, avós e primos?” Complicado. Família é família, né?
Pra piorar, a missão dele, o trampo da vida dele, era ser guerreiro. E trabalho é trabalho, né? É quase como se um policial hoje em dia tivesse que matar o próprio primo. Seguir pela moralidade da missão individual ou pela moralidade da linhagem familiar?
O livro todo é Krishna dando conselho pra Arjuna:
– Cara, a gente nasce nesse corpo físico e a forma de fazer as coisas nesse mundo é material, essa vida é ação. Vai lá, faz seu trabalho, morrer não importa, estamos todos interpretando papéis aqui nessa vida, a alma é imortal.
Ok, o livro é um pouco mais complexo que isso, mas deu pra perceber o distanciamento do ato violento que esse recorte tem? Que se usa uma narrativa de algo maior pra justificar a violência? Segura aí que já volto nisso.
Em outros textos vou falar mais (e melhor) de Ghita, de Uppanishad, de Amrtasiddhi e outras coisas do universo yogi que amo tanto e quero que navegue pra além dos círculos de jovens místicos e acadêmicos excêntricos.
Vou misturar com causos da minha vidinha, citar pessoas supostamente inteligentes, dar uma pitada de questões sociais atuais e com sorte alguma referência vai fazer sentido.
Se quer me ver escorregar e soar como uma lunática em algum momento, fica, da um like, manda pra alguém, custa nada:
Quando foi escrita
Embora a datação exata da composição da Bhagavad Gita seja incerta, para muitos hindus, especialmente aqueles que seguem a tradição Vaishnava (devotos de Vishnu, Krishna ou Rama), a Bhagavad Gita é uma escritura “Shruti” (literalmente, aquilo que foi ouvido), uma canção revelada por Krishna, atemporal e divina.
Isso é articulado dentro do texto em si, como se quando ele foi cantado a primeira vez, ele já fosse eterno. Podemos dizer que é um tipo de autenticação escritural que o texto dá a si mesmo: um modo de transmissão do divino até o mundo humano. E, se você não clicou na canção no início do texto, aqui vai uma outra chance de ouvir esse canto divino:
A Gita é uma canção que, com o tempo, virou um gênero, um tipo de literatura em sânscrito. Com o sucesso, vieram muitas diferentes Gitas, várias canções diferentes. Mas a Gita Original é parte do Mahabharata, um dos textos épicos mais extensos do mundo, composto por 18 livros, conhecidos como Parvans. Pra você ter uma noção, o texto todo é maior do que os gregos Odisseia e Ilíada, juntos.
Você pode imaginar que, ao invés de assistir Game of Thrones no fim do expediente, antigamente o pessoal se reunia pra ouvir essas histórias e dramas fantásticos, antes como canção, depois em texto e até hoje é reinterpretada. Faz parte do repertório dos mais de bilhão que compõe o povo indiano e simpatizantes.
Originalmente a história foi passada por tradições orais, como bardos, cantadas, recitadas, performadas e viajadas de lugar a lugar por milhares de anos, mas em algum momento, há cerca de 2 mil anos, começou a ser escrita e copiada como manuscrito, ainda assim com variações regionais e de diferentes tradições textuais.
Foi feito um esforço hercúleo para juntar escrituras por todo o território Indiano e montar uma edição mais fidedigna possível. Um time de escolares sanscritistas no Instituto Oriental de Pesquisa de Bhandarka, em Pune, demorou cerca de 5 décadas para completar a edição crítica do Mahabharata em 1966, compilado após a análise de 1.259 manuscritos de Mahabharata e Ramayana.
Apesar do Mahabharata ser milenar e do capítulo do Bhagavad Ghita ser disseminado no mundo todo, o texto é tão relevante e vivo que, ainda hoje, há uma disputa acadêmica real sobre Ghita ser ou não parte do Mahabharatha 🤯
Alguns estudiosos, como G.S. Kier, sugerem que a Gita foi composta em estágios diferentes por vários autores. Capítulos 1 e 2 podem representar a camada original, enquanto outros foram adicionados posteriormente.
Outros, como R.C. Zaner, defendem a unidade doutrinária da Gita, considerando-a um texto coeso com uma ênfase clara na mensagem de misticismo e divindade de Krishna. Porém há gente como Angélica Malinar, que busca um equilíbrio e sugere que, apesar de camadas de desenvolvimento, a Gita foi codificada sim como parte integral do Mahabharata.
Disseminação mundial
Fora as disputas pelas origens do texto original, também temos que considerar a fidelidade das traduções. A Ghita é o livro mais traduzido no mundo e ocupa um lugar importante nos panos de fundo da história intelectual, filosófica e política não só Indiana.
Oppenheimer faz referência a ela quando diz “Agora eu me tornei a Morte, o destruidor de mundos.”; Huxley em “As Portas da Percepção” diz”A Bhagavad-Gita é uma das maiores obras espirituais já escritas.”; Thoreau escreveu em Walden:
“No amanhã, eu almoço meu intelecto na filosofia estupenda e cosmogênica da Gita de Bhagavad-Gita, em comparação com a qual nosso mundo moderno e sua literatura parecem mesquinhos e triviais.“
A primeira em inglês foi feita pelo orientalista britânico Charles Wilkins em 1785. E, cerca de 100 anos depois, outra publicação de idiomas inglês muito influente apareceu, Sir Edwin Arnold’s “The Song Celestial”, que, curiosamente, foi a primeira cópia do Bhagavad Gita que Mahatma Gandhi leu, quando estava estudando para se tornar um advogado em Londres.
Sim, Gandhi, na verdade, não encontrou a Gita na Índia.
Á partir daí o texto passou por muitas mãos, já foi traduzido em mais de 75 países e muitas das versões não são baseadas no trabalho dos acadêmicos de Bhandarka. Por isso, quando você vir um líder político usando conceitos avulsos ou quanto encontrar uma tradução livre de um guru qualquer, desconfie.
Usos políticos
A Gita da sentido a coisas que não tem sentido, justifica coisas que não tem justificativa, por isso concordo com Thoreau, tudo o mais parece mesquinho e trivial frente á ela. A Gita é uma romantização. A Gita é um livro lindo.
Mas não pro Zizek. Ele não enfatiza o uso da Ghita para os nobres grupos pró “não violência”, o stalininsta provoca trazendo um tema controverso, ele conta que quando confrontavam Hitler “nós estamos fazendo coisas horríveis, matando jovens judeus, mães, como podemos fazer isso sem nos tornarmos bestas?” ele usava esse discurso pseudo-oriental de distanciamento da materialidade supostamente contido na Gita pra justificar a chacina.
Por outro lado, Zizek defende que, em crises profundas, medidas radicais são necessárias, isso feito sob um pretexto maior de justiça social e de transformação das estruturas de poder. Ele usa o discurso marxista e não a Gita pra justificar a violência, mas é parecido, a linha é tênue, por isso Losurdo cruza essas frentes em seu texto.
Se você esta vivendo no mesmo mundo que eu em 2024, a gente sabe que o outro lado faz o vira-mesa e diz que esse tipo de pauta de justiça social é que é discriminatória com o grupo deles – a total morte da verdade (satyagraha?), vale a leitura desse livro da Michiko Kakutani. É um afago.
Ou seja, os conceitos da Ghita são atemporais, verdade – lula ou bolsonaro, violência – gaza ou israel, tudo se costura e não é de hoje, não é só da Ghita, muitos outros clássicos de várias culturas trabalham esses temas.
Calha que a Ghita é a mais usada e, de certa forma, tudo que poderia ser dito sobre ela já foi dito. Houveram muitos leitores, comentadores, tradutores de diferentes tempos e culturas, mesmo assim esses conceitos – e todos os outros – ainda são pauta em disputa.
Contexto filosófico
Seus ensinamentos são atuais porque a experiência interna de ser um ser humano, o corpo, a mente, os desejos, os medos, tudo isso ainda é muito parecido. Em outro momento trago essas outras partes bonitas da Ghita aqui, mas continuando a linha de raciocínio, pra não fazer o Hitler e distorcer o texto todo, é bom lembrar que há um contexto histórico e cultural muito específico em que a Gita está falando.
Ela surgiu como texto unificado em um período em que o Budismo e o Jainismo já estavam estabelecidos. Ocorre no contexto do campo de batalha de Kurukshetra, onde a guerra é iminente e o diálogo de Krishna com Arjuna aborda conceitos que podem ser entendidos em relação a ideias presentes nessas tradições, como a natureza da existência e a tensão entre a libertação (moksha) e a vida mundana (samsara).
O texto investiga os dilemas filosóficos e éticos que cercam a busca pela iluminação espiritual enquanto se cumpre as responsabilidades no mundo material. Além disso, compartilha afinidades filosóficas com os Upanishads, que formam a base espiritual dos Vedas e aprofunda conceitos como a natureza da alma (atman) e a busca pela unidade com o divino (Brahman). Também toca sobre o sistema de castas, foi base pra diversos textos jurídicos e passa por práticas ritualísticas e devocionais.
É uma operação muito difícil de tentar compreender a Gita, ao contrário dos modelos mais ascéticos do Yoga clássico, como, por exemplo, no Yoga Sutra de Patanjali, que sugere que o Yogi deve se retirar do mundo, – se retirar da sociedade, como renunciante, como sannyasin, – a mensagem universal da Gita promove uma ética social de se engajar no mundo através da prática yoga disciplinada, transformando todas as atividades em um serviço e devoção humilde de yoga.
Usos religiosos
Assim como o uso político do texto é bem problemático, o religioso também é. Como você pode ver, nosso embate filosófico atual não é o mesmo acima, o texto não foi escrito pra dialogar com cristianismo, islamismo e outros monoteísmos no geral.
Sim os conceitos caem como uma luva pra muitas coisas, por isso mesmo, e pensando na dificuldade das formação, interpretação e traduções, também é importante não cair em qualquer uso religioso que gurus atuais podem fazer.
Muitos líderes se dizem de linhagens orais supostamente muito mais autênticas do que qualquer texto acadêmico, crescem em cima disso e, curiosamente, depois em algum momento suas ideologias se fundem com o mundo dos (grandes) negócios, assim nos mostraram Sri Sri Ravi Shankar da Fundação Arte de Viver, Baba Ramdev com seus produtos ayurvedicos, o famigerado Osho e sua comunidade Rajneeshpuram, entre outros.
Inclusive o Sr. Goenka, do retiro de silêncio que falei, em suas palestras-gravações com contos budistas (sem fonte teórica exata) conta que era umrico empresário birmanês. Claro, se dedicar a espiritualidade requer tempo livre e a disseminação de ideologias em escala global requer recursos financeiros, assim como influência política.
Assim como falei que “seja feliz” e a “paz entre todas as religiões” não são discursos neutros, aqui digo, que o da “não violência” também não é.
Trouxe o Losurdo pra me dar uma mão demonstrando que “não violiencia” é um jogo de interesses em todas as culturas, também ousei colocar o excêntrico Zizek pra apontar que o mesmo texto de onde Ghandi tira conceitos para sua luta pacífica, é também o texto que Hitler cita pra justificar suas chacinas – ai que confuso!
“Não violência” é um ideal lindo, também quero! mas é acima de tudo papo simplificado pra guiar as massas, ela nunca se concretizou por longos períodos de tempo. A violência tem muitas facetas, assim como a paz. A verdade está em constante disputa.
Não sei muito bem como fechar tudo isso. Se esse texto não te fez entender nada da Ghita além de suas origens, mas deixou mais claro como os recortes dela estão presentes na nossa história de formas controversas, ótimo 🙂
Feischamento
As vezes levo zuzu na minha mãe e, se de início ela e a cinzinha se arrepiavam todinhas e faziam barulhos horríveis. Agora elas se olham fixamente por horas, com certa apatia por estarem naquela situação forçada de convivência, mas não se engalfinham mais. Podemos dizer que é um conflito sem violência na maior parte do tempo.
Esses dias minha mãe chegou na conclusão de que, apesar da rivalidade, é essa a amizade que elas conseguem ter, então acho que ela vê a situação mais na perspectiva da paz. Ela tava falando da cinzinha e da zuzu, acho. Apesar de natural cuidar dos mais idosos, é também difícil morar com os pais depois de certa idade, talvez ela estivesse falando da relação dela com minha avó, não sei – seguimos com os paradoxos de viver.
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