Sem o menor lastro na realidade, tô animada pra 2024. Sou do time que ama a fic ano novo, vida nova. Repensar a existência todinha, como se fosse possível começar de uma folha em branco – quando na verdade da pra ver a marca de caneta no verso, teve (muita) coisa antes.
Não da pra resetar a vida, mas quando vira o ano, tenho alguns rituais pra marcar um nó simbolizando que o tempo passou – estamos em um novo ciclo. São duas atividades que dão forma á virada, cada um tem seu tempo e intensidade: não podem ser acelerados, são processos narrativos que unem passado e futuro num presente.
Sei que a festa de ano novo já seria um rito pra marcar essa virada e não é que eu tenha algum desgosto por Réveillon, não chego a ser como a Tati Bernardi, que tem aversão a celebrar em praias lotadas, mas são rituais mais introspectivos, justamente porque não tenho uma preferência pra essa data.
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Em alguns anos viro a noite dançando louca de MD – em outras vou dormir cedo, sozinha, antes da meia noite, na paz, feliz da vida. Como minha disposição pode variar, criei dois rituaizinhos que podem ser mantidos em qualquer situação: fazer 108 saudações ao sol e escrever alguns planos no planner.
Ritual 1: Dançar conforme a música
Colocar “planejar o ano” como um ritualzinho pessoal é quase uma piada de mal gosto. Como a Marília Morchovich fala muito bem nesse texto, ter de planejar é sintoma do acumulo de funções que o capitalismo despenca sob nossos ombros e faz com que a auto-organização seja quase uma questão sobrevivência – cada um por si.
Não é um acaso que os métodos de produtividade e recursos como bullet jornal, planners e pomodoro se tornem cada vez mais populares. Com condições precárias de trabalho, são exigidas dos trabalhadores mais tarefas do que é humanamente possível cumprir. Dessa forma, o tempo de trabalho precisa ser não apenas estendido, mas também otimizado.
Apesar de entender que o sobrecarrego é sistêmico e desleal, não adianta ficar se debatendo contra ele.
Ninguém vai quebrar o sistema distribuindo panfleto anticap no trem, também não vai vencer o sistema se tiver um AVC antes dos 50 em troca de fazer 6 dígitos ao ano.
O gerenciamento do tempo e o orçamento mensal-anual são alguns dos melhores rituais que construíram pra gente nesses tempos e não vale a pena lançar o carpe diem pra depois me entupir escondida de rivotril.
O caminho do meio é o planner da Cicero.
Quarta-feira: dia que o gerente vai no presencial, ficar 12 horas no escritório pra fazer uma média.
Sexta-feira: dia de home office, ir na praça da república no ato contra a privatização dos canteiros de esquina
Lembrete: lavar o bonézinho do MST.
Algumas pessoas podem não gostar de planejar, acham que é pavimentar o caminho pra ansiedade ou engessar o dia a dia.
Planners, calendários, listas e escapulários
Se o foco do planejamento for responder “Onde exatamente quero chegar”, “Quanto exatamente quero ganhar”, realmente fica mais pesado, essas masturbações mentais metrificáveis são um caminho fácil pra frustração, principalmente se você é propenso a acreditar em ficções e espera que tudo saia 100% como o esperado.
Sou uma devota de Thais Godinho, ela era uma outperformer, daquelas que desconfiamos viver um dia de 30 horas, tanto que criou o blog vida organizada (uma bíblia). Em algum momento, Thais tropeçou no budismo e tentou segurar os paradoxos das crenças antigas e novas com o rebranding produtividade compassiva.
Ainda bem que não parou por aí, ia envelhecer muito mal, a vida foi generosa e puxou ela pra um buraco mais fundo: hoje a gata faz doutorado na área sofrimentos do trabalho – confesso, foi quando achei que ela ia largar a toalha, mas segue firme, porque é o que da pra gente fazer mesmo.
Digo isso pra ilustrar que “produtividade” é um assunto complexo e paradoxal, nem sempre sinônimo de cadelinhas corporativas alienadas. Digo também pra você ir lá no blog dela, tem tudo.
Minha mini contribuição pro assunto é: “Como quero me sentir” e “Com quem quero estar” são boas perguntas-exercícios para para guiar os passos na hora do planejamento, assim como planejar de 12 em 12 semanas ao invés do ano inteiro, e usar o aplicativo notion (junto com o planner, sim) – tudo pra mim.
Compartilhei na edição passada algumas das coisas legais pra fazer no começo de 2024 e já priorizei isso, se não é justamente a diversão que fica pra segundo plano, soterrado pelo acumulo de funções e manutenção da vida cotidiana: treino, impostos, alimentação, trabalho, cursos, eventos profissionais, médicos…
O esquema é pensar que planejar é mais uma bússola do que um mapa.
É um instrumento que guia a alguma direção, por exemplo, gosto de pensar uma meta maior como tema do ano todo, mas não especifico de janeiro a dezembro como chegar nela. Outra coisa, guardo uma lista viagens-passeios que gostaria de fazer e escolho em média 2 para fazer a cada quadrimestre.
Tenho uma personalidade bem experimentativa, quero adquirir muitas habilidades ou pelo menos me humilhar tentando – é mais forte que eu. Costumo tentar mais ou menos uns 5 hábitos-hobbies por ano. Aliás, estamos aqui, agora, diretamente, ao vivo, no hábito número 1 de 2024, escrever e publicar semanalmente. Fica que vai ter mais:
Pra que eu possa fazer isso sem perder o lastro das atividades-para-sobreviver, planejar é essencial, me ajuda a encaixar o trabalho entre a diversão, digo.. o contrário.
Ritual 2: Conectar o corpo no momento presente
Além desse ritual-planner, no dia um, também costumo fazer 108 saudações ao sol.Em alguns estúdios de yoga, em datas especiais, o pessoal faz exatamente isso, então só emprestei o ritualzinho pra mim também – esse número mágico indiano e essa sequência aleatória.
A ideia é ter um momento durante o dia para fazer um nó no tempo, conectar respiração, pensamento, corpo, tudo num só lugar – estamos aqui, somos isso, estamos juntos, passamos mais um ano.
Claro que preferiria aterrar mente-corpo-respiração ao momento presente com minha tribo, numa dança ritualística, cantando, tocando instrumentos e quem sabe com um toque de erva medicinal, mas não rolou de nascer nesse contexto.
Cresci com um pôster da saudação ao sol sob a parede azul do escritório de casa, era algo que fazia desde criança com minha mãe, é uma lembrança boa. Depois de adulta, quis saber qual é a tradição dessa sequência, em qual texto está? Por que todo mundo faz? Por que em cada linhagem de yoga ela é um pouco diferente?
Se você também tem curiosidade de saber a origem do Surya Namaskar, a tal da sequência de saudação ao sol, vem comigo, vou contar aqui brevemente, mas já aviso: ela não esta talhada em nenuma escultura milenar, nem descrita em escrituras medievais. É apenas um conjunto de movimentos que um indiano rico inventou há 100 anos atrás.
A saudação ao sol
Durante a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, mostrar saúde e força era uma maneira de demonstrar a soberania nacional. Por exemplo, os alemães usavam seus exercícios de ginástica não apenas para desenvolver corpos saudáveis, mas também para promover certa moralidade e criar “novos alemães”.
Em toda a Europa, foram publicados textos sobre esportes, como remo, equitação, boxe e natação, bem como manuais de como andar, escalar e saltar. Nesse contexto, surgiram as revistas de saúde e fitness, como a L’Athlète, em 1896, ano em que ocorreram as primeiras Olimpíadas modernas. Antes disso, em 1893, ocorreu a primeira exibição internacional de fisiculturismo!
Na Índia, várias ginásticas ocidentais, como Ling, Sandow e YMCA, tiveram um grande impacto, foram incorporadas à cultura local de lutas e podemos encontrar essa mistura na A Enciclopédia Indiana de Fisiculturismo (1950), livro que foi traduzido para o inglês e vendido em outros países, e que tambémincluía uma descrição do Surya Namaskar como um exercício, juntamente com uma história detalhada de uma suposta tradição.
Porém, segundo o livro The path of modern yoga, em pesquisa bibliográfica extensa, se descobriu que não há uma tradição milenar para o Surya Namaskar.
Em realidade, foi o Raja Bhavanarao Pant Pratinidhi (1868–1951) que inventou e disseminou a sequência. Ele testou diversos manuais de exercícios gringos & indianos, mas não viu resultado em nenhum deles – gente como a gente, que testa mil aplicativos de treino e a polchetinha continua ali.
Então, ele pegou uma sequência que seu pai costumava fazer para rezar, fez modificações, chamou de surya namaskar (saudação ao sol) e, com ajuda do homem-de-negócios e guru Paramahansa Yogananda, adaptou para forma popular á época, um manual com passo a passo: “Número 1: fique em tadasana, postura da montanha… Número 2: se dobre em uttanasana, etc.”
Bhavanaro sistematizou sua prática como a ciência de Namaskaras, e incorporou ao currículo de sua escola de yoga e ginástica em Satara. Dizia que a prática tinha benefícios como o desenvolvimento muscular, cura de doenças e alívio da dor.
Seu livreto incluía ilustrações e recomendava práticas em ciclos, variando de 25 a 50 ciclos para crianças de oito a doze anos, 50 a 150 ciclos para meninos e meninas de doze a dezesseis anos, e 300 ciclos para todos acima de dezesseis anos.
Desde então, milhões de pessoas tem feito essas prostrações, pela índia e depois pelo mundo, com ajuda dos manuais com figuras e traduzidos em inglês, mas também com o empurrãozinho dos gurus procurando formas de disseminar seu conhecimento de forma homogênea e memorizável.
Tudo isso é muito diferente dos livros de yoga mais antigos, em sânscrito, medievais, secretos, que pouco ou nada tinham a ver com uma sequência de movimentos em ritmo – dos quais inevitavelmente vou acabar falando em outras edições. Se te interessa, fica:
O Hatha yoga é uma criação moderna e a saudação ao sol foi incorporada a ela. Tem uma base, mas cada um faz á sua maneira, o próprio Bhavanaro misturava os movimentos com entoação de mantras védicos e Bija Mantras.
Aliás, é provável que Bhavanaro tenha nomeado sua sequencia de surya namaskar devido à semelhança com o ritual de adoração ao sol, no qual os sacerdotes brâmanes se ajoelham e se prostram – bem coisa do sincretismo religioso que permeia todo o imaginário indiano até hoje.
Outro exemplo que adoro, nos akharas, ginásios de fisiculturismo indianos na época, além de treinos com pesos, rolava o Surya Namaskar e uma mistura de outras técnicas que os praticantes traziam de diferentes lugares.
Nesses locais também havia fortes movimentos anti-colonialistas, o que causava um paradoxo, entre aceitar as técnicas europeias e estrangeiras no geral, mas ao mesmo tempo fortalecer o movimento naiconalista, por isso, por vezes, tudo era apropriado, adaptado e renomeado como uma prática “puramente indiana”. Quem sabe um tanto do que hoje se diz ser yoga e puramente indiano não seja de outro lugar?
Pensamentos finais
Não da pra controlar o futuro usando um planner. Rola uma productivity p0rn doentia na internet e não vou corroborar com isso: por vezes me organizo e não entrego nada, acontece.
Também não da pra transcender a realidade praticando uma sequência de movimentos inventada entre guerras. Não vou abraçar a alienação e fingir não existir muita pesquisa acadêmica que desbanca os discursos mágicos de gurus por aí.
Pode soar meio quadradona, mas gosto de fazer essas coisas – e seguro a onda de ser brega numa boa, não preciso justificar que planejo porque é mais efetivo ou faço yoga porque é milenar e místico.
Quando deitei a cabeça no travesseiro, trinta minutos depois da virada do ano, fiquei muito feliz por estar dormindo cedo, sóbria, com meu irmão vivo e limpo capotado no sofá e ainda ouvindo o som da minha mãe lavando a louça do jantar.
Pra esse ano que passou, esse ano a calmaria era tudo, tudo o que eu mais precisava – quase chorei do tanto que precisava. Porém, desejei fortemente que a próxima virada seja de vestidinho branco curto, bem gostosa, banhada no champanhe, quem sabe até no meio de alguma muvuca.
Independente da situação, sei que vou escrever no meu planner e fazer as saudações ao sol. Como diria o filósofo Byung-Chul-Han em “O desaparecimento dos rituais: Uma topologia do presente”, o ritual esta para o tempo, como a casa esta para o espaço. Gosto de decorar esse nó de tempo, assim como enfeito minha casa.
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