Beira da calçada, choppinho na mão em pleno domingo á noite, bumbum prá lá e pra cá, “pé na areia caipirinha gua de coco cervejinha”, na missão de cruzar o olhar com um cara a duas mesas pro lado enquanto minha amiga falava alguma coisa de Zappa… a vida é boa demais.
Mesmo que eu seja do time careta, quase zero álcool, fazer esse cosplay completo de felicidade-brasileira me faz muito bem. Dias quentes e leves, meu irmão de floripa tava por aqui, ele também é programador, passamos longas horas cada um no seu notebook entre funções, risadas, commits, confissões…
Vários rolezinhos, companhia 24 horas, conexão boa. Gosto de ser feliz, mas é insustentável ser feliz o tempo todo. Tem coisa que só dá pra ser feita com solitude intensa, certa sobriedade das emoções, uma pitada de pessimismo e quem sabe um pouco de desespero. O natural da vida é ser infeliz de vez em quando.
Lembra que fui num retiro de meditação por 10 dias? Então, como ele é totalmente em silêncio no local tem várias placas indicando as regras e horários pra gente não ter que perguntar e, em todas elas, tem um recadinho no final: “be happy” – isso me incomoda demais.
Sim 🥁 chegamos á edição em que volto ao assunto da primeira edição, como prometi na segunda edição.
Lá contei o porquê fui me submeter á viver esse retiro que chama vipassana, um método / sistema de meditação que existe há décadas e que pode ser feito em quase qualquer país, de graça, sempre no mesmo padrão.
Apesar de gostar muito dessa instituição, hoje vou fazer algumas críticas numa vibe meio “acaba jovem místico”. Se você sair antes do fim, quero que fique com uma mensagem: apesar dos pesares, vá a um retiro vipassana, faz muito bem pra cabecinha, vai sim.
Vou falar mal e quem já passou dos 30 entende bem, a gente até pode gostar muito de uma coisa, mas sempre vê um detalhe aqui e ali. Envelhecer é ficar muito crítico ou tacar o fodasse, independente da posição, a gente aprende a segurar a barra de bancar a coexistência de ideias paradoxais.
Por exemplo, gosto do espaço silencioso e organizado de vipassana pra me retirar, acho que clareia a mente e admiro a capacidade de expansão e manutenção da instituição.
Por outro lado, acho a disseminação de conceitos no retiro meio alienante, principalmente porque o Sr. Goenka diz que sua técnica é universal deseja que todas as pessoas sejam felizes. Claro, perto de outros papos que rolam em retiros, esse é o menos problemático, mas esse papo de neutralidade me incomoda.
Hoje vou questionar se ser feliz é um desejo universal, se desejar a paz entre as religiões é um desejo universal, se querer ser desapegado é um desejo universal e se sentir samkaras por nossos karmas é algo universal.
Crítica 1: Be happy
No fim do retiro, quando pudemos falar uns com os outros, um cara grisalho, magrelo, óculos de tartaruga, cara de professor, me disse assim (imaginar com sotaque carioca):
– O último dia foi o melhor pra mim, quando ele fala pra gente imaginar a vibe da meditação se expandindo pra todos os seres, desejando Metta pra todas as pessoas, senti muito amor…
Pronto, foi pego pelo discurso.
A gente passa 10 dias ali vivendo uma complexidade de emoções, pra no último dia ensinarem a gente a desejar good vibes pro mundo?! Ok, é bonito, participo, mas não me desce totalmente.
Se você já tentou meditar sabe: ás vezes é agonizante, entediante, não é uma vibe – justamente, meditar é importante porque te ensina a conviver com essas nuances da realidade e nem sempre te faz feliz no fim.
E se não der sensação boa, meditei errado? Não. O Sr. Goenka diz não ter nada de errado. Apenas observe: se estiver em good vibes no fim da meditação, deseje isso pro mundo, se não estiver, não vibre sua energia pra ninguém. No meu caso, ás vezes um narrador em minha mente dizia:
“Enquanto pessoas estão sendo bombardeadas entre Faixa de Gaza, Rocinha e Ucrânia umas 50 pessoas no meio da floresta atlântica meditam em amor, desejando liberdade e felicidade a todos os seres humanos – super efetivo.”
Só uma pessoa muito insuportável poderia discutir que “ser feliz” não é um desejo universal? Talvez. Já vim te amaciando, desde a primeira edição me mostrei uma chata disse que não acredito em felicidade plena, nem em paz mundial: são utopias, ficções, discursos políticos de adestramento.
Por que tantas empresas querem tanto que você queira ser feliz?
3 months ago · 5 likes · Alex Castro
Até a mais desgraçada das pessoas tem momentos de felicidade. Pra quê atrelar uma técnica de meditação a um desejo genérico desses?
Há milhares de anos se acreditava que vivemos essa vida várias e várias vezes em uma roda de samsara, o desejo final da meditação era, então, não reencarnar mais (não vou pular nesse buraco agora, mas se quiser, pode dar um respiro aqui pra refletir sobre o sistema de castas).
Por que hoje a finalidade da meditação não é a iluminação, mas a felicidade? Se antes o esquema era sair da roda, por que hoje queremos ficar felizes girando aqui?
Crítica 2: A paz entre as religiões
Nesse mesmo último dia do retiro em que aprendemos a expandir felicidade, somos guiados a uma sala com televisão. A primeira tela que vemos em dias, lá dão play em um video do Sr. goenka falando sobre paz universal e aceitação de todas as religiões numa conferência da ONU:
“Uau. Esse retiro é coisa séria, esse professor é reconhecido mundialmente”. Mostrar esse tipo de vídeo ao fim do curso é uma técnica de comprovação social fortíssima.
Talvez com um pouco de senso crítico a pessoa estranhe essa forte ênfase na dicotomia ocidente-oriente, o “oriente”, a Índia, como grande portador do discurso pacificador. Pra quem não é muito versado na história dos gurus indianos pelo “ocidente” pode parecer tudo único quando, na verdade, esse papo é bem antigo:
Há mais de 100 anos atrás, Vivekananda também fala de paz em um discurso muito similar: “Acreditamos não apenas na tolerância universal, mas aceitamos todas as religiões como verdadeiras.” (Você pode ouvir o original aqui.)
Esse discurso não é tão famoso fora do universo do yoga, talvez você tenha pensado mais em outros como os de Ghandi ou Dalai Lama, é bem por esse linha. Vou falar mais sobre paz e não-violência em outras edições, então se você ta curtindo, da um like, envia pra alguém e fica:
Enfim, tem vários outros materiais que eles poderiam passar no último dia, por exemplo o documentário sobre vipassana aplicado em presídios, que é ótimo.
Mas não, a escolha foi por outro lado, como tudo no retiro é meticulosamente organizado, essa técnica de marketing no final também é:
Mostrar esse discurso tira qualquer dúvida que você tinha sobre ter se enfiado numa experiência difícil de 10 dias e te coloca num lugar – você fez parte de algo maior, volte, chame outras pessoas, venha se voluntariar no retiro, vamos expandir e alcançar a paz mundial.
Bom, não concordo que essas coisas de ser feliz e de paz entre todas as religiões são universais, mas são, talvez, conceitos secundários do retiro. A ideia central mesmo é sentar e prestar atenção nas sensações do corpo sem sentir apego ou aversão, é se desapegar.
Difícil, ainda mais por tantos dias e horas: o corpo dói, a cabeça começa a pirar em mil coisas – volta, volta aqui! Presta atenção no ombro direito, o que tem ali? Nada? Tudo bem, bora pro cotovelo…
Crítica 3: Ser desapegado
Haja auto-controle pra não levantar no meio do quinto dia de meditação e lançar um “galera, a gente ta se auto-flagelando aqui!! bora fazer uma trilha!! tem uma cachu aqui perto, bora!!”.
10 dias é muita coisa. Além de estar numa linha tênue entre ser elitista ou anti-capitalista, ficar tanto tempo sem fazer nada é também chato pra cacete.
Por outro lado, rola um imaginário comum que acredita no “fazer coisas chatas leva a bons resultados”, que “constância e disciplina levam mais longe”. O pessoal te olha meio diferente por você conseguir ser capaz de meditar.
Só é um superpoder meditar tanto tempo, porque a gente vive o total oposto disso: sob uma economia baseada em derreter nossas mentes e corpos de prazer.
Todo mundo tem medo de perder o controle, de gastar demais e não conseguir pagar o aluguel, de comer muito e morrer do coração, de transar por aí e morrer na solidão… Logo, cada pessoa tem sua propria fetichizacao da disciplina pra alguma área da vida.
A meditação vipassana mexe com esse imaginário, é um exercício duro, um tratamento de choque para você aprender a não sentir apego e nem aversão, te torna uma pessoa mais resiliente e capaz de aplicar essa habilidade em outras áreas da vida.
Bonito, mas não é “natural” de todas as culturas admirar uma pessoa disciplinada, com total dominação do corpo e da mente, que não tem desejos excessivos. O auto-controle não é natural, não é universal e muito menos um valor moral superior.
Não quero saber de elevação, é a nível do mar, a nível de terra que meu amor mundano existe e insiste / apego e liberdade (mesmo que parciais e provisórios), não precisam ser uma contradição.
Em algumas comunidades indígenas, por exemplo, a aceitação e integração dos desejos é parte intrínseca da experiência humana e não algo a se expurgar ou dominar.
Por que a gente inventou de erradicar os desejos? Um dos motivos é, com certeza, por nos distraem das obrigações sociais e financeiras, que a cada ano de capitalismo que se passa só podem ser minimamente cumpridas se mantemos um estilo de vida estoico, na constância de um relógio atômico.
Claro que não é tudo culpa do capitalismo, outras culturas abraçam esse ideal – arriscaria dizer que sempre as mais hierárquicas – por exemplo, outra referência forte de disciplina que temos é a da arte marcial ou da época do shogunato japonês.
Mas falando do agora e de capitalismo mesmo, me incomoda que a obessão por auto-controle emocional, racional e financeiro exista na mesma intensidade em que colocamos botox na testa. É anti-natureza essa coisa de tentar evitar ao máximo os movimentos da mente e do corpo.
“E por isso não me arrependo dos meus apegos, das vezes que senti vontade de permanecer, de ser, de estar em todos os verbos de ligações com outros seres .”
Será que é preciso mesmo se esforçar e sofrer pra alcançar uma estabilidade de difícil manutenção? Ser desapegado a todo custo não me parece um conceito universal.
Crítica 4: Introdução a conceitos catequizadores – karma, samkaras…
Por fim, quero falar sobre as explicações filosóficas que o Goenka dá ás tais sensações físicas que sentimos ao ficarmos sentada por tantas horas.
Todo mundo que vai sente elas em alguma medida e não é só sobre dor nas costas, também tem sensações boas, umas borboletas no estômago, um peito aberto… é muito tempo pra sentir bastante coisa.
Será que as sensações vem acompanhadas dos pensamentos? Ué, mas achei que não tava pensando em nada, só escaneando as sensações do corpo…
O Sr. Goenka tem uma explicação pra tudo isso. Ele chama as sensações de Samkaras, diz que estão relacionadas com os karmas.
Ele conta várias historinhas budistas ao longo do curso, enfatiza que não importa quão rude você errou no passado ou em outras vidas. Você pode, á partir de agora, meditar e mudar sua conduta, parar de acumular mais samkaras, alcançar a liberdade das amarras da mente e do corpo, disseminar a paz por aí.
Ou seja, o passado tem consequências, porém não tem uma punição direta, como no cristianismo. As dores não vem como castigo porque você cometeu pecados, mas tem alguma relação sim com sua vida pregressa.
De qualquer forma, sr. Goenka diz que nessa técnica tanto faz se a pessoa sente coisas boas ou ruins, o importante é sua capacidade de manter a equanimidade, se manter firme sentado, parado, meditando, sem jugar os Samkaras, se livrando deles ao deixar eles passarem por você sem reagir.
Muito lindo e compassivo, porém é uma fic. Não temos a menor explicação para a origem da variação de sensações no corpo e a gente não precisa acreditar em Samkaras, nem em Pecados, nem em Sinapses pra querer meditar ou pensar em mudar antigos padrões de vida. (não sou anti-ciência atual, acredito em sinapses, mas no futuro podemos chamar de outra coisa, vai saber.)
Tem coisas que só é possível experienciar, não da pra tocar, nem colocar em palavras – nem precisa. Da pra perceber que, quanto mais a gente fica ali meditando usando a técnica Vipassana, mais expandimos nossa percepção do corpo e, de certa forma, dominamos o desejo da mente de fazer outras coisas.
Isso pode ser dito de muitas maneiras, mas não são conceitos universais, como coloca o sr. Goenka. Proust, um cara que inclusive a gente sabe que não era lá muito feliz, disse “Só nos curamos de um sofrimento depois de o haver suportado até ao fim.”
Espero que você vá a Vipassana
Apesar das gravações de final do dia do Sr. Goenka contando suas histórias budistas e tentando nos catequisar a nos livrar de supostos samkaras, todas as outras horas do dia são em silêncio, você com você mesmo, sem ter que se preocupar com coisas básicas de sobrevivência como cozinhar ou pagar por estadia.
Onde mais você encontra isso?
Sentar 10 dias em vipassana não vai sanar “todos os problemas da humanidade”, nem os seus, mas é muito bonito pensar e agir como se fosse mesmo.
Saindo do retiro, perguntei ao pessoal que devolvia nossos celulares se eles trabalhavam ali fixo ou eram voluntários. Os dois me disseram que eram voluntários há anos, mas infelizmente tinham outras obrigacões e não dava pra ficar ali fixo.
Claro, eles queriam ficar o tempo todo ali, na masturbação de limpar seus pecados, exercitar a auto-disciplina e emanar felicidade pro mundo. Que missão nobre de vida, pessoal. Catequisação concluída com sucesso.
Ironias á parte, não há local que a gente não esteja submetido a alguma ideologia, seja no shopping center, na empresa ou no centro de meditação… como disse David Foster Wallace, algumas estão tão presentes que parecem ar ao nosso redor, assim como a água é obvia a um peixinho no aquário.
Cabe a cada um desenvolver uma consciência mais profunda de como interpretar melhor as construções sociais nas quais estamos presos inseridos. Com Vipassana não é diferente, você vai no retiro e o sr. Goenka diz o tempo todo que é uma técnica universal, como um jornalista dizendo que sua opinião é imparcial.
O retiro existe sob um contexto político e cultural maior, cabe a cada participante olhar mais a fundo onde isso se aplica á sua vida. Vipassana não é a-político e nem laico, por exemplo, na inglaterra existe um retiro que é apenas para executivos.
Natural que role isso, é muito tempo e dinheiro pra manter essa estrutura mundial. Não é um ambiente a-cultural e nem uma técnica universal. Muito pelo contrário, é uma retirada em direção a uma crença muito específica: com a prática podemos ser felizes. Feliz pra quê?
“Talvez apegar-se ao desapego seja dos menos saudáveis dos apegos”
Os trechos em destaque são todos desse lindo texto “O desapego não é o único caminho para a liberdade” da Geni, psicóloga Guarani. Vai lá conferir.