Queria viver viajando, mas também amo um conforto, por isso entrei na área de TI . Estudei, fiz a transição de carreira, me estabeleci minimamente pra alçar vôos, daí veio covid. Nada de viagem. Quantos planos mudamos por conta da pandemia, né
Antes disso, dava aulas de yoga e até viajei um tanto fazendo isso, foi massa. Hoje vou contar causos de yogis viajantes, mas ninguém que conheço, e sim a história dos primeiros professores de yoga nômades dos Estados Unidos.
Viveram há 100 anos atrás, também tiveram que adaptar planos de vida por forças maiores e mudaram totalmente de carreira pra ganhar uns trocos.
Eram apenas comerciantes e estudantes indianos vivendo normalmente nos EUA, quando os juristas do tio sam levantaram uma pauta que mudou tudo:
pessoas da ásia, são pretas ou brancas?
Como somente pessoas brancas podiam ter cidadania americana, do dia pra noite, esses indianos-nem-pretos-nem-brancos perderam todos os direitos no país.
Pior, pra se tornar americano era necessário abrir mão da antiga cidadania então, quando isso aconteceu, eles já não tinham mais a nacionalidade Indiana.
No papel, eram pessoas sem nação.
Foi entre a Lei Johnson-Reed de 1924 e as reformas liberais da Lei Hart-Celler de 1965, que nasceram nossos mensageiros do yoga moderno.
Viajar dando aula de yoga
A saída foi transitar entre os estados até que a política tomasse forma concreta e alguns se resolveram pelo yoga como ofício. O problema é que o impasse jurídico durou alguns anos e o curioso é que nenhum deles tinha dado aula de yoga antes.
Por exemplo, abaixo você ve uma notícia sobre um famoso empreendedor no ramo de importação de chás para donas de casa americanas.
Já á direita, o mesmo homem, depois do processo de desnaturalização, passou a anunciar aulas de yoga, prana, vibrações e ocultismo:
Pode parecer uma história totalmente sem pé nem cabeça e irrelevante, mas esses caras foram imprenscindíveis pro yoga ter se tornado a prática internacional que é hoje.
Ninguém sabia o que era yoga
Na época, se você perguntasse pra alguém o que era “yoga”, era capaz da pessoa nunca nem ter ouvido essa palavra. Como esses caras acharam uma boa ideia sobreviver vendendo isso?
Já rolava uma conversa entre diferentes culturas e religiões nos Estados Unidos:
- contei outro dia de quando o Vivekananda foi ao Parlamento Mundial das Religiões em Chicago em 1893 – ele queria disseminar os conhecimentos hindus e pra isso criou a Sociedade Vedanta, ensinava Raja Yoga no linguajar “ocidental”.
- a Sociedade Teosófica também estava em alta, fundada em Nova York em 1875 com o propósito de juntar pessoas no estudo comparativo de filosofias e ciências.
Nossa história de hoje começa nos anos 20, ou seja, o mercado de Sociedades Místicas já era consolidado.
Estavam em alta cursos sobre energia universal, pensamento positivo, manipular o poder da mente, obter cura, felicidade ou dinheiro. Nada muito estranho, ainda temos o “pró vida” e outros grupos similares que ensinam essas coisas que a autora Catherine Albanese cunha como religião metafísica americana.
Aproveitando o hype, nossos homens de negócios saíram por aí ensinando conceitos de yoga com essa metafísica americana – eram comerciantes, então usavam marketing de primeira, misturavam logos e frases de impacto, um super rebranding.
Táticas de venda
Não tinha como fazer publi, filtrar público alvo, nem subir ebook no hotmart, pra alcançar as pessoas o esquema era anunciar no maior meio de comunicação: o jornal.
O acadêmico Philip Deslippe se debruçou em pilhas e pilhas de jornais para saber por onde esses yogis nômades passaram e o que ensinavam. Ele se embrenhou pelos acervos de todo país, leu centenas de anúncios e organizou todos para encontrar padrões entre as aulas.
Phillip descobriu que esses neo yogis faziam um clickbait para que as pessoas fossem aos cursos:prometiam soluções para solidão, casamentos felizes ou davam aulas teóricas sobre como jesus tinha sido um yogi na Índia.
Os profês seguiam mais ou menos as mesmas táticas: chegavam em uma nova cidade onde ficariam por semanas ou meses, encontravam hoteis, alugavam saguões ou auditórios e promoviam suas aulas nos jornais.
Não tinha anúncio de instagram, mas o meio de prospecção era parecido com o que a gente tem hoje: lives abertas pra alcançar o maior número de pessoas possível e mentorias fechadas pra quem quer saber mais.
Davam 3-4 palestras públicas gratuítas pra atrair curiosos e dali, com sorte, um pequeno grupo de alunos mais interessados entravam nos grupos pagos que custavam entre 100-120 dólares por aula, geralmente os alunos eram de classe média ou alta.
Phillip defende que foi graças a esses homens itinerantes que mudavam suas personas e estilos a cada estado que passavam, que o yoga se popularizou.
Os professores se conheciam pessoalmente ou à distância e partilhavam abertamente ou roubavam secretamente materiais de ensino, alunos e outros recursos à medida que se comercializavam para o público metafísico americano – era o “único” meio de subsistência e profissão.
Yoga e ocultismo
Filosofia, meditação, psicologia, self-improvement… O yoga sempre andou nessa corda bamba, entre o pragmatismo e o ocultismo, inclusive é importante colocar aqui que o viés do yoga místico sempre existiu e que temos outros casos modernos, não era novidade dos professores nômades, temos como exemplo o emblemático Alex Crowley:
O escritor, poeta, mago e filósofo britânico publicou em 1939 “Eight Lectures on Yoga” onde fala de posturas (asanas), técnicas de respiração (pranayama) e meditação, mas também mete sua famigerada teoria mágica no meio.
De início a galera tinha medo desses grupos e teorias, rolavam rumores de que as mulheres ficavam loucas e deixavam suas famílias pra seguirem os gurus/swamis.
Com o tempo o discurso foi mudando, vendiam como um conhecimento milenar que era trazido pra ajudar os americanos. Quem usava muito essa tática mais moderna foi um dos professores itinerantes mais famosos e talvez o primeiro professor de posturas no ocidente, Rish Singh Gerwal.
Yoga e posturas físicas
Gerwal estava de olho nas tendências da Índia, lá estava rolando todo aquele movimento de conversa entre yoga e fisiculturismo que comentei outro dia.
Um dos nomes grandes por lá era Kuvalayanada, de quem Gerwal copia os livros descaradamente, os publica em seu nome e diz aos alunos privados que aprendeu tudo nos Himalaias.
Já nos anos 30, no fim da segunda guerra, aumenta o culto ao corpo num geral, o yoga segue essa tendência e Gerwal esta surfando a onda faz tempo, ele cria “yoga teacher trannings”, incentivava estudantes a viajar e disseminar o hatha yoga no mundo.
Uma segunda leva de professores nômades surge, agora com uma proposta e necessidades totalmente diferentes, os mestres instigavam os alunos a irem para a India, tirar certificados… a organização aumenta.
Aqui, sobre nova roupagem, a história se repete, e isso me fascina muito. Volto pra contar mais em próximas edições, tanto do yoga postural globalizado dos últimos 50 anos, quanto do medieval de centenas de anos atrás. Se quiser continuar navegando pelos yogas de diferentes tempos e se divertir com as coincidências, fica.
Feischamento
Depois de 4 anos, vou voltar ao plano de viajar trabalhando, trabalhar viajando. Tô arrumando as coisas, mas se antes o plano era só de ida, hoje nã é bem assim – fiz reforma, montei meu cantinho, os tempos mudaram, eu envelheci. Ainda quero viajar, mas ter pra onde voltar agora parece mais convidativo que antes.
A existência é assim, né. Eventos marcantes renovam nossa forma de ver o mundo, descobrimos coisas diferentes, juntamos com o que já tínhamos, criamos algo novo, mais ou menos como era antes, só que diferente.
Quando fui á Índia, direto tentava entender a diferença e semelhança entre coisas tão exóticas pra mim naquele choque cultural todo, e com mais frequência do que eu gostaria as pessoas balançavam a cabeça daquele jeito indiano e respondiam
“same, same, but different”.
Acho essa resposta perfeita pra se “yoga é isso ou aquilo”. Não tenho a menor pretensão de esclarecer nada aqui no “ritual místico de cura”, mas quero trazer causos interessantes que mesclam espiritualidade sobre um aspecto mais geral do mundo – entre políticas, músicas, filmes…
Adoro essa história do Swami Circuit (o nome que o Phillip dá a esse grupo de professores nômades) porque ela trás uma dimensão de que o yoga esta inserido numa realidade maior – por vezes regida por políticas racistas, por exemplo – também me lembra que todo mundo em algum momento, até mesmo há 100 anos atrás, procura formas milagrosas de resolver as coisas, ao ponto de nos prestarmos a coisas ridículas, que rendem boas histórias depois, pelo menos.
Além disso, note que nenhum americano de subúrbio sabia muito bem o que era yoga, o povo aceitava qualquer coisa e foi feito um trabalho de base da desinformação que ainda persiste – não só persiste, é nossa nova realidade: yoga em 2024 é sim uma mistura de metafísica americana, com fisiculturismo dos anos 20 e também filosofia indiana medieval.
Yoga sempre foi uma coisa viva e ousaria dizer que as fotografias em redes sociais e outros elementos ainda mais atuais também moldaram essa prática, daqui um tempo poderemos entender melhor, de longe.
Por hora, o texto de hoje foi apenas sobre o início do yoga global.
Acho legal a gente identificar que o marketing de práticas espirituais atual é tão parecido com o de antigamente. Com sorte poupo alguém de gastar os tubos em curas mágicas que – eu também queria que funcionassem como na propaganda!!! – são uma furada, no máximo uma experiência boa pra conhecer gente que ta no mesmo barco que vc.
No mais, fiquem atentes a grupos sigilosos ou professores que deliberada e dissimuladamente assumem o disfarce de um yogui moralista pra ganhar uma grana – aquela coisa, todo dia um trouxa e um esperto saem de casa. O cara pode nem fazer por mal, mas sei lá.
E só pra terminar, se você chegou até aqui, vale disseminar por aí o fim do yoga romântico (já que a pauta por aí é amor romântico kk), que considera mais tradicional e verdadeiro aquele passado por puros indianos – ou seja, marketing com pressupostos sobre raça, ascendência religiosa, origens geográficas e distinções artificialmente nítidas entre o Oriente e o Ocidente.
Se curtiu o papo e quer ver uns anúncios de jornais antigos, da uma lida lá em um dos artigos do Phillip!
Até mais 🙂